Contra aqueles que queimam livros
Um comentário sobre o ensaio "Aqueles que queima livros", de George Steiner
Nas páginas do texto “Aqueles que queimam livros”, publicado no Brasil pela editora Âyiné em livro homônimo, George Steiner faz uma bela defesa do livro. As primeiras palavras já nos colocam no centro da disputa entre a defesa e a queima de livros: “Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem”. Isso ocorre porque o poder do livro é incontrolável. Da exaltação à ofensa, da sedução ao enojamento, da virtude à barbárie, da sensibilidade à banalização, tudo pode ser provocado pelo texto.
Nesse sentido, a impossibilidade de controlar o “dizer” dos livros amedronta o sujeito ávido por controle e poder. Os governos autoritários, da extrema esquerda à extrema direita, por “amarem” suas mentirosas certezas, odeiam a imprevisibilidade do dizer questionador dos textos.
Do lado dos defensores dos livros, reside a certeza de que, como diz Steiner, “os livros são a chave de acesso para nos tornarmos melhores”. Na leitura, temos acesso ao fenômeno da existência em toda sua potência. Pelas linhas lidas, reconhecemos as questões que nos fazem humanos (o amor, a morte, a vida, o tempo, o bem, o mal etc.) e, em uma leitura mais profunda, alcançamos um nível de intimidade com a obra lida em que, conforme aponta Steiner, “lemos o livro, mas, mais profundamente, pode ser o livro a nos ler”.
Como já observava Steiner, a tecnologia foi tomando o espaço do livro, relegando-o à margem da sociedade. Não se trata apenas da troca da leitura do livro pela leitura em um dispositivo eletrônico, mas, também, da desleal concorrência com a banalidade manipuladora com que a tecnologia atinge o humano, sempre cuidadosamente disfarçada de doce entretenimento. Em uma sociedade atordoada pela banalidade, as certezas mentirosas daqueles que queimam livros podem se perpetuar livremente, sem maiores incômodos.
Por isso, as seguintes palavras de Steiner, datadas do começo do século, se tornam assustadoramente mais verdadeiras a cada dia: “Cada vez mais, a ciência, a informação, o saber em todas as suas formas, serão transmitidos e registrados por meios eletrônicos. As rachaduras já grandes na nossa cultura e nas nossas letras só vão aumentar”.
E se á publicação de um texto que questiona a relação entre o humano e a tecnologia no Substack parecer incoerente ou hipócrita… Ótimo! Um pensamento que não cause algum desconforto não vale a pena, a gaveta é o seu lugar.
STEINER, George. Aqueles que queimam livros. Editora Âyiné, 2020.